sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

HISTORIAS SOBRE O MONGE DA LAPA- JOÃO MARIA (1ª PARTE )

http://www.astrovates.com.br/conto/joaomari.htm

Noel Nascimento

PARTE-I

João Maria voltara à gruta para esquecer os horrores da guerra. A gruta tornara-se um pouso na sua caminhada sem fim. O que sofrera com seu povo, dizia que não fora em vão. Guiara à luta os mais valentes do sertão. Seguindo-lhe a bandeira branca com um pombo vermelho ao centro, armados de facões e algumas espingardas, os camponeses atiravam-se contra as tropas legalistas, destroçando-as. Depois socorreu muita gente porque nos vilarejos só havia feridos, órfãos e viúvas. Soldados semi-loucos vagavam pelas matas. Um deles, que sobrou das tropas de Juca Tigre, também virou monge nos campos de Palmas.
Depois daquela terrível guerra civil viera a desolação e ainda vingavam ódios, ressentimentos. Pica-paus e maragatos continuavam inimigos, e uns atribuíam aos outros os atos de banditismo. Muitos camponeses diziam que os pica-paus estavam se transformando em “miseráveis”.
João Maria ainda não acreditava na vitória dos pica-paus, que trucidavam os prisioneiros, degolando-os, fuzilando-os pelas costas. Os maragatos, que usavam um ramo de vassourinhas no chapéu para vencer as batalhas, haveriam de restaurar a monarquia. Recusava-se a crer na morte do compadre Gumercindo Saraiva e de outros chefes rebeldes, dizendo que voltariam com a Armada e um exército de anjos pela frente.
Um outro velhinho, o Agostini, morara antes dele na gruta, mas não fizera guerra, nem história, só folclore, fora mais um tipo de frade e não propriamente tudo que se entende por monge.
Monge não é frade, nem faz parte de ordem religiosa. O frade não acredita no fim do mundo, não prepara o povo para a guerra, não comanda uma batalha. Monge tem de pregar renúncia e fanatismo, anunciar castigos, tempestades, epidemias, praga de cobras e gafanhotos, salvar da vida de misérias o povo do mato, povo da Casa Verde.
A história de monge começou quando os antigos moradores de Curitiba inventaram que São Francisco apareceu na figura de um monge para apaziguar os negros aquilombados no Morro dos Enforcados. Na figura do monge, e ele é João Maria, projetou-se a plebe do campo, vagando pelos caminhos do latifúndio. Só João Maria polariza a devoção popular. No folhetim “A Vida de João Maria de Jesus”, que corria de mão em mão, dizia que ele fora Johana Ieshona, nascera na Galiléia e tivera a visão de Paulo o Apostolo. Mas um major reformado afirmava, nos cafes de Lages, que o monge não passava de espião argentino a fazer o levantamento da região sul-brasileira. E um general pica-pau descobriu que João Maria já se chamara Anastás Marcaf. Outro militar, o major Domingos, um dos comandantes da defesa da Lapa, escreveu: “Este cenobita, um velho rijo e seco, anda há quarenta anos perambulando por aquelas passagens. Fura o sertão até a Lagoa Vermelha; de lá corta os campos de Palmas; vai ao Tibagi, vence as florestas e as montanhas dos Agudos; interna-se no Paranapanema; faz lá os seus milagres, as suas prédicas, as suas orações: dá seus bons conselhos, e retorna derivando para as margens do Iguaçu, Jangada e não sei por onde mais. Andarilho de primeira, erra por montes e vales, andrajoso e esquálido, com um bastão apenas por arma. Não há insetos que lhe mordam as carnes, nem feras que lhe moam os ossos”.
Acomodara-se na gruta onde, à tardezinha, projeta-se a sombra de Santo Antônio, santo que apareceu inteirinho numa fotografia. No mosteiro que é a serra – a natureza ascética – via os pinheiros como se fossem vultos penitentes de braços estirados.
- Santo não come.
De cócoras, chuchurreava o chimarrão três vezes ao dia. Seu olhar parecia o céu sobre a Casa Verde, e seus pensamentos perdiam-se no alto com a fumaça fedorenta do pito de bambu. Se faltava o fumo, cachimbava folhas secas. Sob os olhos azuis a barba branca era uma bandeira de paz desfraldada no rosto.
Todo mundo sabia de onde vinha:
- João Maria é um enviado do céu.
No pequenino oratório guardava uma bandeira do Divino Espírito Santo, outra de Santa Trindade de Deus, e o crucifixo com um Cristo de marfim. Abria-o na hora em que os pobres iam rezar lá na gruta, enquanto os ricos compareciam à missa de frei Silvério.
Se os curiosos perguntavam quem era, tinha a resposta pronta na língua:
- Sou um homem como vocês, estou cumprindo uma sentença.
A gruta era apenas mais um pouso no seu caminho. Mas para ser monge é preciso libertar-se de sentimentos egoísticos e desligar-se dos males terrenos. Lembrava-se muito bem de sua iniciação, daquelas noites borrifadas de estrelas. A cigarra silenciava cedo com a passarada. No ruído dos insetos e das aves noturnas destacavam-se o coaxar dos sapos, o uivo do noitebó, o crocitar pressago da coruja e o zumbido dos mosquitos. Tinha alucinações, confundia vaga-lumes com duendes e ouvia urros de fantasmas. Visões explodiam em gargalhadas, num alarido de imprecações e zombaria. Mas saíra vitorioso na luta contra os demônios e o seu eu pregresso. Num sonho, o anjo lhe dissera: “Vá, João Maria. Caminhe pelo mundo e cumpra sua missão sagrada. É preciso salvar a humanidade pecadora”.
O frio açoitava-o nas noites de inverno. Passava-as em claro, encolhido, aquecendo-se ao braseiro, sufocado pela fumaça. No entanto, era crença que suas mãos paralisavam a tempestade, que manobravam os céus. Para livrar-se da água das chuvas e do ataque das feras, fincava três varas no chão, formando um triângulo dentro do qual dormia tranqüilo. Vencia as febres com chá de ervas. Nunca fora picado por serpentes ou colhido pelo jaguar. Ao pressentir o perigo, punha o crucifixo entre as mãos e repetia três vezes: “São Bento, São Bento, me livre desse bicho peçonhento”.
- Santo não morre.
Se passava a pito e chimarrão, poucas vezes lhe faltavam pinhão, mel e verdura. Bem que se lambia ao tomar café com leite e bolinhos de trigo que lhe davam nas fazendas. “Velhinho comilão, roedor de queijo”, - caçoava um boticário. João Maria não rejeitava queijo, leite, manteiga, ovos, hortaliças, mate e fumo.
Além de comprometido com a gente sertaneja, não continha a ânsia de perambular. Abrenhou-se sertão adentro, e o sertão é a Casa Verde, soalho de relvas, tetos no céu. Nela – dizia – os homens devem abrigar-se contra a miséria e os horrores da guerra, porque a Casa Verde está sob sua proteção. Tinha a Casa Verde na mão, a Mãe-Terra, as matas e seus mistérios. Aguardavam-no em toda parte e não podia faltar à festa de inauguração do povoado de São Sebastião das Perdizes, o maior acontecimento da Casa Verde, para o qual fora convidado pelo compadre Rocha Alves, antigo chefe maragato.
Ao mesmo tempo, João Maria  era visto em lugares diversos. Na Casa Verde parece que o tempo não passa. O sol – seu relógio – caminha vagarosamente, monge no céu. Faz sempre a mesma trajetória, mas dá a impressão de não sair do lugar. O antes, o durante e o depois confundem-se na Casa Verde.
O velhinho descera a serra fugindo às romarias. Bagagem pouca, mochila à cacunda e bornal a tiracolo. Do cinto de couro cru pendiam a marmita de folha, guampa, cuia e uma bomba de prata. As roupas puídas no corpo esguio. A manta carcomida envolvendo-lhe o pescoço, o gorro de jaguatirica à cabeça. O paletó de brim xadrez a prender-lhe os movimentos. Um longo rosário cujas contas afirmava ser “as lágrimas de Nossa Senhora”. As calças de fundilhos rotos deixavam entrever as ceroulas e o sexo, o que levara uma beata a exclamar: “nunca vi santo com as vergonhas de fora!”.
Com ar avoengo, cabelos como crisanto, as barbas de algodão – leque aberto para baixo, à luz de fogueiras, comandava terços e ave-marias. Sagrava as fontes, debelava epidemias com chá de vassourinhas, celebrava batizados e casamentos, benzia o gado e as roças, fazia vaticínios e sumia no horizonte. Fantasma de carne e osso, mais real que as iaras, os sacis, os boitatás e outros seres encantados da floresta. João Maria era reflexo dos pobres do campo que viam nele a projeção do eu interior. Andarilho onde a prole do agregado se transformava em intrusos e vagabundos, furava o mato, abria o caminho, onça com duas patas no pés e outras duas no bordão. Dormia nas ramadas das fazendas ou no pouso debaixo da árvore margeando o olho de água.
Em Canoinhas, que diziam ser “a sua oficina”, refúgio de maragatos que fugiam à degola, o povo vivia muito agitado. No Morro da Cruz foram visitá-lo Aleixo, Tavares e Bonifácio Papudo, antigos chefes rebeldes, enquanto uma comissão de fazendeiros, estes pica-paus, dirigiu-se a Curitibanos para pedir proteção ao mandachuva Francisco Albuquerque contra “os bandidos que infestavam Canoinhas”.
Pouco a pouco os que haviam sido maragatos eram considerados “bandidos” pelos pica-paus, e estes “miseráveis” pelos maragatos.
Quanto João Maria não atacava os pica-paus, suas prédicas semelhavam a de Marrecas, pouso de arrieiros, vilinha de rústicos casebres cobertos de tabuinhas com quintais cercados de pau bruto. Ali a besta da ponta chegava batendo guizos e campainhas presas à coleira, alteando na cargalha a flâmula branca. Marrecas era cruzada pelos cargueiros carregados de sal, açúcar, rapadura, cana e frutas. Ele descera uma serra inacessível e chegara por uma vereda. Mochila às costas, segurava pela alça o oratório, apoiando-se ao bordão. Perto de um ranchinho, sob árvores à beira do arroio, armou a barraquinha. Tropeiros e moradores do lugarejo abancaram-se nos calcanhares e nas saliências do chão para ouvi-lo.
“- Quem é vancê? E donde vem?
- Sou um filho de Deus e um pobre pecador. Venho de tão longe, que ninguém chega lá. Faço penitência e dou aviso ao mundo. Tempos virão em que os homens vão se destruir como feras. Nações contra nações, irmãos contra irmãos, inveja, roubo e morte em toda parte. Nas cidades só há ambição e hipocrisia. Os filhos da mata precisam ficar na Casa Verde, de onde será ouvido o troar do canhão na grande guerra universal.
- Como pode vancê vir por essa picada que só vem dar no rancho e por lá não vai noutro caminho?
- Não tenho caminhos. Viajo com Deus. Quando canso, paro; se tenho fome, como.
- Vancê não tem medo dos bichos brabos do mato?
- Não me fazem mal porque jamais matei um ser vivente.
- É pecado matar um tigre? Se ele nos persegue?
- O tigre só ataca quem tem medo. No coração do pecador mora um outro tigre: o ódio. É uma fera atacando outra fera. Por enquanto, plantem vegetais e frutas, pois os climas vão mudar as matas e até os bichos se acabarão por causa da maldade dos homens. Ainda vou mandar muitos monges para salvar os meus povos. É crime viver juntando dinheiro a dinheiro, terras a terras, à custa do trabalho alheio. A lei de rei foi escrita no céu e é a lei de Deus.”
Numa vilinha de tarefeiros de erva-mate, formou a roda de chimarrão. Chimarrão quem inventou foi o índio Jaguaretê que teve uma longa vida após ter sido expulso da tribo por causa de um amor impossível. Agora, muitos bugres vivem no cativeiro do chimarrão, abrem picadas com os facões e podam os arbustos, caminham com os pés feridos na floresta, enfrentando o bote das feras, a picada da serpente. Ao sapecarem as folhas no carijo ou no barbaquá, queimam a pele, deformam as mãos calejadas. Carregam nas costas enormes fardos, presos à cabeça por tiras de couro que rasgam a fronte. Acocoravam-se, as caras de cobre a reluzirem. Entre as cuiadas quentes, João Maria receitava: banho de arnica, samambaia, três cipós, capim-papuã, ou vinho-de-braúna, sangue de bituíba, chá de marapuana, pacová, crista-de-galo e cidreira.
Enquanto havia a mata, a Casa verde, João Maria acordava com a passarada e assistia à dança dos tangarás, lembrando-se da lenda dos filhos do Chico Santos. O mestre, um dos passarinhos de asas azuis, trinava no ramo mais alto, enquanto o bando ouvia atento como os musicistas que observam a batuta do regente. Quando calava o biquinho, o bando rompia num gorjeio orfeônico de passarinhos. Após rápido intervalo, as avezinhas – nacos do céu – alçavam-se em saltinhos de duas em duas, dando início ao bailado. Ao recomeçar o canto, o mestre dançava de galho em galho, enquanto os demais voavam uns por cimas dos outros, inventando a coreografia. Segundo a crença, Chico Santos, temente a Deus, advertia os filhos: “não presta viver só namorando, festando, pulando como saci, sem o menor respeito pela Quaresma e os dias santificados”. Os marotos não perdiam fandango, eram sete irmãos, e o mais velho batizou o mais novo para este não virar lobisomem. Porque farrearam na Quaresma, na Semana Santa, na própria Sexta-Feira da Paixão, caíram de cama, os sete com bexiga e – pobre do Chico Santos! – um a um ia morrendo e virando tangará.
Tudo João Maria via na Casa Verde. Crianças com o corpo tomado por bicho-de-pé ou carrapatos, levas de leprosos que percorriam os sertões sem entrar nos povoados. Após os curativos e benzeduras, tinha por hábito mandar que rezassem em jejum e com o rosto voltado para o norte. A um que chegara a cavalo, dissera:
- Perdôo os pecados, mas tem de rezar cinqüenta ave-marias e cinqüenta padre-nossos sem tirar a boca do chão.



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